Marco Rodrigues
Foi com apenas 15 anos de idade que Marco Rodrigues começou a cantar fado, mas pode dizer-se que o mesmo já lhe corria nas veias desde que nasceu.
Estreou-se na gravação de álbuns com o disco "Fados da Tristeza Alegre" (2006), ao qual se seguiram "Tantas Lisboas" (2010), "Entretanto" (2013) e "Fados do Fado" (2015). Este ano, o Marco brindou-nos com o seu quinto álbum de estúdio intitulado "Fado do Cobarde". O FLAMES esteve à conversa com artista para saber em pormenor no que é que consiste o seu mais recente disco.
Entrevista anterior feita pelo FLAMES ao artista: http://flamesmr.blogspot.pt/2015/07/102-entrevista-do-flames-marco.html
Alguns dos temas presentes neste álbum não são fado, mas o fado estará sempre presente pelo menos através da tua interpretação. Porquê esta decisão para este disco?
Antes mais deixa-me dizer-te que o disco é composto por 3 fados tradicionais que são tocados pelos instrumentos tradicionais: o trio de viola, guitarra portuguesa e baixo, sem qualquer tipo de outro instrumento. A diferença é que escolhi 3 letristas que nada têm a ver com a linguagem fadista para stes 3 temas específicos e mais tradicionais. Decidi então convidar o Carlão, a Capicua (entrevista feita pelo FLAMES à artista aqui) e a Luísa Sobral (entrevistas feitas pelo FLAMES à artista aqui e aqui) sendo que eu já tinha feito uma música com a Luísa. Não era um fado, mas uma música minha. Desta vez decidi desafiar estes artistas para escreverem letras para 3 fados tradicionais, que exigem algumas regras, a nível de métrica, rima, etc. Foi um desafio fantástico. Para além disso, todo o resto do disco será composto por canções de compositores e letristas que não têm a ver com este ambiente do fado mas que ao pensarem em mim, enquanto intérprete, fizeram temas exactamente a pensar num fadista, num ambiente mais intimista que é como a música que eu canto.
Também convidaste pessoas dos ÁTOA...
Sim, os ÁTOA (entrevista feita pelo FLAMES à banda aqui), o Diogo Piçarra (entrevistas feitas pelo FLAMES ao artista aqui e aqui)... convidei uma série de pessoas que eu considero muito enquanto artistas e intérpretes. Eu gosto muito do Diogo por exemplo, e o desafio deste disco foi sem dúvida esse, convidar essas pessoas para os aproximar a este ambiente fadista que é um ambiente que não está presente na música que eles fazem.
Como foi o processo de selecção destes artistas? Como é que decidiste quem iria participar neste álbum?
Os meus 4 discos anteriores eram voltados para o fado. A base era essa. Este é o contrário. Neste disco eu quis 3 fados tradicionais que fizessem com que as pessoas me reconhecessem enquanto artista, mas depois quis abrir um pouquinho os meus horizontes musicais até porque eu ouço muitos tipos de música. Por isso, decidi arriscar com um disco menos tradicional mas que me fizesse sentido. Foi essa a base da selecção.
E estiveste envolvido directamente no processo criativo de cada tema, ou deixaste os artistas livres para se expressarem à vontade?
Grande parte dos temas foi criada de forma livre. Disse que gostava de ter um tema de cada um dos compositores, embora haja um ou outro tema em que eu pedi para que escrevessem especificamente dentro daquele ambiente. Estou a lembrar-me do Pedro Silva Martins que fez um tema incrível e que eu achei muito interessante. Eu fui pai há uns meses, então pedi-lhe para ele escrever um tema não como todos os temas que se escrevem neste contexto que é um amor incondicional entre um pai e um filho, e aquela paixão enorme que acontece quando somos pais, mas eu queria que ele escrevesse um tema sobre as coisas mais corriqueiras e caricatas que ocorrem quando te deparas com a paternidade. Por exemplo, as noites que não dormes.. o tema chama-se "Mal dormido", o levantar durante a noite e pisares um brinquedo fora do sítio, as fraldas, o ranho, enfim, as coisas que são caricatas quando passamos a ser pais. À excepção desse tema onde eu dei o mote, todos os outros artistas estavam completamente livres para poderem escrever.. sempre, claro, a pensar num ambiente mais intimista e num intérprete fadista.
Relativamente ao videoclip do single "Fado do Cobarde", participaste em todo o processo criativo ou confiaste a tarefa aos profissionais que nele trabalharam?
Nós apresentámos a ideia à Joana Areal (que é uma realizadora fantástica). O vídeo do "Dia de Folga" da Ana Moura (entrevista feita pelo FLAMES à artista aqui) foi ela que produziu. Quando pensámos na Joana, pensámos num vídeo para uma música que, não sendo um fado tradicional, eu gostava que fosse um vídeo fresco e novo, diferente.. com um ar de Verão. Foi a única coisa que eu disse. Eu disse apenas que queria um vídeo que ilustrasse esta história de estarmos numa relação que não vai para a frente e não funciona e que não conseguimos sair dali. Quase uma ironia. A Joana fez um trabalho fantástico ao convidar esta bailarina (Filipa Peraltinha) e coreógrafa que fez um trabalho incrível. Nota-se que ela está-se a ir embora.. mas todo o contexto, toda a imagem... isto foi gravado num armazém de pescadores, em Setúbal. Nota-se perfeitamente que ela está a querer sair e ir embora da relação, mas está com dificuldade. E esta forma de dança contemporânea consegue transmitir bem esta ideia. A juntar a isto, o facto de estarmos em Setúbal, com uma vista daquelas, no Verão, temos praia, temos sol, temos uma relação que é cantada e interpretada de uma forma quase caricata. Nós sabemos que isto não vai dar em nada, mas não conseguimos mesmo sair daqui. Não dei muitas dicas, deixei à criatividade da Joana e não me arrependo nada.
Em relação ao álbum, o que é que podemos esperar deste novo trabalho?
É um álbum com canções que, da minha parte, terão uma ligação ao fado.. é a música que eu faço e é quase impossível eu interpretar os temas de outra forma. Mas as pessoas podem esperar 3 fados tradicionais e outras músicas de pessoas que nada têm a ver com este meio musical. Mas este meio desperta-os, todo este misticismo e características específicas que este género tem, que gostam muito do meu trabalho felizmente e que quiseram alinhar neste desafio. Acho que está muito interessante exactamente por esta ideia de pessoas que não estão neste meio nem estão habituadas a fazer musicas.
Notaste diferenças entre a forma como os artistas mais novos e mais velhos se relacionavam com este estilo musical?
Devo-te dizer que sim, mas o feedback foi muito positivo. Ficaram contentes com o convite e com a ideia de participar neste desafio, mas não senti diferenças a nível musical... para mim, a grande surpresa foi este "Fado cobarde" que foi um dos primeiros temas que apareceu e sem dúvida que, pela idade dos compositores, do João e do Gui (ÁTOA), surpreendeu-me bastante a maturidade com que foi escrito e a ideia musical que me quiseram transmitir. Claro que a produção do Tiago Machado e a minha deram uma nova viragem ao tema, mas fiquei agradavelmente surpreendido com a maturidade a nível musical e a prontidão com que trabalharam no tema e mo mandaram logo. Os Amor Electro também fizeram um tema incrível, com muito charme e de que também gosto. Por isso também eu escolhi logo este tema, porque acho que faz muito bem a ponte entre o meu último disco que é de fado tradicional, e que são clássicos do fado, para este novo disco.
Quando estás a promover um novo trabalho pensas apenas nesse álbum ou começas imediatamente a projectar o trabalho seguinte?
Por acaso a minha matriz de álbum para álbum tem sido esta: foco-me no trabalho presente e nem penso sequer se vou fazer outros álbuns. Neste momento estou focado na tournée e nem sequer penso em vir a gravar mais alguma coisa. Estou focado em trabalhar nestas músicas e com os músicos para podermos apresentar estes trabalhos ao vivo. No próximo ano está fora de questão pensar num próximo álbum. Se bem que o processo criativo de um artista é um processo contínuo, não é sazonal. Claro que se de hoje para amanhã surgir um tema qualquer que eu ache fantástico provavelmente pensarei em guardá-lo para um próximo álbum.
O fado vai sobreviver sem dificuldades ao teste do tempo?
Eu não acho, eu tenho a certeza absoluta, até porque se o fado sobreviveu até agora.. quando cheguei a Lisboa no final dos anos 90, o fado estava completamente abandonado, pouca gente ia a concertos de fado e os artistas tinham pouca visibilidade. Foram os bairros típicos e as casas de fado que conseguiram manter isto. Se o fado sobreviveu a esta altura...
Lembro-me que no Bairro Alto a geração de fadistas era toda muito antiga. Havia muita pouca juventude a querer cantar fado e a apaixonar-se com esta música. Se o fado sobreviveu a isto, seguramente irá sobreviver, especialmente agora que temos uma geração novíssima de miúdos com 14, 15, anos que eu já convido para cantar comigo e que são super apaixonados por esta música. Vou mais longe, o fado está para durar e com muita força.
Nos últimos anos houve um aumento exponencial do número de turistas que nos visitam. Consideras que o fado poderá utilizar esta nova realidade a seu favor?
O fado não vai utilizar os turistas, os turistas é que têm alimentado o fado. As casas de fado hoje em dia felizmente já recebem famílias que vão ouvir a música, e que saem de lá fascinados, mas continua a ser maioritariamente um dos grande motivos de interesse dos turistas. Isso é uma das grandes riquezas culturais que temos em Portugal.
Se pudesses convidar um outro artista internacional quem convidarias?
Bela pergunta.. tenho tantos artistas.. infelizmente o Frank Sinatra já não posso convidar senão convidava-o a ele. Talvez a Hiromi Uehara que é uma pianista japonesa de quem sou fã.. sou apaixonado pela música dela, para eu cantar um tema enquanto ela toca piano.
Há géneros musicais e artistas que te inspiram para além do fado?
Eu acho que um músico ou um interprete é uma pessoa que nasce com uma capacidade para reproduzir muito daquilo que ouve. Por isso eu digo que o fado é contemporâneo, porque vive daquilo que vive. A música composta agora é diferente da que foi composta há 50 anos atrás. Infelizmente escrever não é das partes em que sou mais dotado, mas os letristas não escrevem como escreviam há 50 anos atrás. A musica que ouvimos, as pessoas que nos rodeiam e os ambientes em que vivemos influenciam a forma como fazemos música, sem dúvida alguma.
Ainda existe alguma disparidade entre homens e mulheres no fado… O que é que se pode fazer para tentar esbater esta questão?
Em primeiro lugar, não se pode fazer nada em concreto. Se formos ver, o fado tem um ícone máximo que é a Amália Rodrigues. Para o público estrangeiro ainda hoje é um pouco dificíl perceber que o fado não é cantado apenas por mulheres. Porque logo a seguir quando começou a aparecer um "boom" do fado, voltam a aparecer nas grandes salas a Mariza, a Ana Moura e mais uma vez o fado é falado lá fora por causa de algumas mulheres. Sendo que naturalmente se vai contrariando um pouco esta tendência. Felizmente eu já fiz grandes salas em todo o mundo, as pessoas já começam a estar mais despertas. No entanto ainda há um caminho muito longo a percorrer até que a imagem do fado, particularmente no estrangeiro, seja repartida em fadistas homens e fadistas mulheres. Os homens têm de continuar o seu trabalho para fazer ver que afinal, o fado, não é apenas feito por mulheres. Não acho que se deva fazer algo de especial, acho sim que os homens apaixonados pelo fado devem continuar a trabalhar para mostrar que estão aqui.
Qual consideras ser a palavra chave no meio artístico português: competição, colaboração ou nenhuma destas?
Se calhar estou um pouco condicionado pelo contexto actual, mas eu acho que, de uma forma geral a música em Portugal ou os artistas em Portugal são muito solidários e a solidariedade perante coisas muito más que às vezes possam acontecer tanto no meio artístico como nos outros meios. Esta capacidade que nós portugueses temos de sermos solidários e de nos juntarmos e de um momento para o outro fazermos acontecer as coisas e fazermos com que as pessoas tenham a ajuda necessária. Acho que a solidariedade é sem dúvida uma das características do meio artístico português.
Um agradecimento especial ao Marco pela simpatia a que já nos habituou!
Para a concretização desta entrevista foi imprescindível a colaboração do José Dias a quem a equipa do FLAMES quer agradecer a ajuda.