Para nos desvendar algumas delas, Ricardo S. Amorim escreveu “Lobos que foram homens” (opinião que podem espreitar
aqui).
A escrita deste livro foi assim a desculpa perfeita para falar quer com o autor quer com a banda. Nesta primeira parte mostramo-vos a entrevista com o autor. Ora espreitem.
No livro o Ricardo fala sobre o processo de criação do mesmo, ou seja, sobre como surgiu a ideia etc. Pode partilhar isso com os nossos seguidores?
A ideia surgiu de uma forma bastante espontânea, conforme relato no próprio livro. Surgiu durante uma viagem de carrinha do Porto para Lisboa, em que vim de boleia com a banda, que já conheço pessoalmente há alguns anos e com a qual já tinha tido algumas interacções profissionais. Adicionalmente, partilho o nome e apelido com o guitarrista, e era algo frequente receber acidentalmente e-mails que lhe eram destinados, com informação confidencial. A reserva com que sempre os tratei, avisando os remetentes e eliminando os mesmos, levou a que também se criasse uma relação de confiança.
Apresentado o convite pelo Fernando durante essa viagem, naturalmente que sustentado no apoio do resto da banda, aceitei de imediato e num muito curto espaço de tempo estávamos reunidos para discutir o projecto. Apresentámos a ideia à editora, a Saída de Emergência, que já antes tinha manifestado interesse (foram, até, os primeiros a ter esta ideia), que acolheu o projecto com muito entusiasmo, e comecei logo o processo de pesquisa e escrita do livro, que durou cerca de um ano.
O Ricardo teve o cuidado de entrevistar membros mais antigos da banda. Estava à espera da abertura por parte de todos para contarem algumas das histórias?
Confesso que não sabia bem o que esperar. Calculei que aceitassem conversar comigo, mas não sabia com que atitude ou abertura o fariam. Era essencial ao livro que a história deles, a sua visão sobre os acontecimentos, fosse contada. Caso contrário, o leitor teria apenas uma visão sobre os acontecimentos e não ficaria a conhecer os dois lados da história. Felizmente, todos aceitaram participar e com uma abertura que me surpreendeu muito positivamente. Houve problemas entre eles (por isso saíram da banda), e até acções judiciais, mas o tempo permitiu-lhes ter uma leitura mais distanciada e objectiva sobre o que se passou. Nunca houve apontar de dedos ou lavagem de roupa suja, houve, isso sim, uma reflexão de homens de 40 anos sobre acontecimentos de há 20 anos atrás, de uma banda que cresceu muito rapidamente e que se deparou com circunstâncias para as quais se calhar não estava preparada. Foi nesta banda que os miúdos se tornaram homens, e na estrada que se fizeram lobos.
Tem imensa experiência em entrevistar músicos, havia um outro livro deste género que gostaria de escrever com outra banda?
Tenho muitos projectos que gostaria de concretizar, uns que estarão ao meu alcance, outros obviamente que não. Gostaria de responder que agora ia para a estrada com o Nick Cave ou com os Nine Inch Nails para contar a história de vida do Trent Reznor, que é fascinante, mas isso não vai acontecer. Tenho planos para continuar a escrever, e acho que há histórias interessantes por contar no universo musical português, mas também não me quero cingir a isso. Logo veremos o que o futuro próximo reserva.
E lembra-se de alguma história engraçada que tenha ocorrido durante uma entrevista a um músico/banda?
Tenho algumas histórias rocambolescas, nem todas positivas, mas prefiro destacar as que mais me dizem, e as entrevistas ao Jaz Coleman, dos Killing Joke, são sempre especiais. Em primeiro lugar, porque sou um grande fã e é uma figura particularmente carismática, daquelas que já não existem. Senti logo uma empatia muito grande na primeira vez que o entrevistei, em 2006. Estava com algum receio, pois ele já teve fama de ser hostil para a imprensa, mas a conversa correu bastante bem. Mas a melhor parte foi quando acabou a entrevista e desliguei o gravador e ficámos a conversar. Contou-me que, em criança, vinha com os pais passar férias à Nazaré e que tinha muitas saudades de Portugal. Apesar da última vez que os Killing Joke cá tocaram tenha sido em 1991, na primeira parte dos Pixies no Coliseu (entretanto, já cancelaram duas vindas), ele disse-me ter uma relação especial com o nosso país. A sua agente ficou com o meu contacto e estive para ir ter com eles a Barcelona na semana seguinte, o que depois não pude concretizar por motivos profissionais. Mais tarde, soube da morte do Paul Raven (que foi baixista de Killing Joke) precisamente durante uma viagem que fiz a Barcelona. Quando contei isto ao Jaz Coleman numa entrevista seguinte, emocionou-se e dissertou sobre o significado cosmológico do que lhe estava a dizer. Para quem conhece e admira o Jaz Coleman, essa não é uma conversa que se esqueça.
Os Moonspell foram sofrendo várias metamorfoses ao longo dos anos. Qual foi a maior dificuldade que encontrou na escrita deste livro?
A maior dificuldade foi, sem dúvida, o tempo. Em primeiro lugar o meu, mas também não foi fácil conseguir conjugar as disponibilidades dos diferentes intervenientes com um método de pesquisa que tive de fazer. Para melhor me organizar, tive de seguir uma linha cronológica e por isso tinha de falar com as pessoas que estiveram presentes naqueles períodos. Cedo percebi que a pesquisa tem de ser balizada com grande disciplina, caso contrário não acaba. Cavamos um poço tão fundo que às tantas não sabemos como sair dele. Embora o livro tenha episódios, foi importante distinguir aquilo que é acessório do que é a história da banda, e ao mesmo tempo permitir que o lado humano venha ao de cima. Enquanto leitor, não gosto que um livro do género seja apenas um relato de factos, mas que os intervenientes sejam pessoas reais, que consigamos perceber o processo criativo nos diferentes momentos, o espírito e as circunstâncias que levaram à tomada de decisões, sejam elas certas ou erradas, pois a falha faz parte do processo.
Cada capítulo tem, para além de um título, uma frase emblemática. Como foi a selecção das frases para cada secção?
Quando o Pedro Paixão me falou do projecto Orfeu Rebelde, e do prazer que teve em trabalhar sobre os poemas do Miguel Torga, reforçou a frase do poeta: “o destino destina, mas o resto é comigo”, e de como isso foi impactante para ele enquanto criador. De tal forma me transmitiu esse entusiasmo que logo decidi que tinha de usar aquela frase do Torga, e não poderia ficar simplesmente “perdida” pelas páginas, de modo a que pudesse passar despercebida. Ia começar o livro com essa frase, mas depois foram surgindo outras ideias e decidi usar uma citação em cada capítulo. Os Moonspell sempre foram muito vocais sobre as suas influências, musicais ou literárias, e achei que isso faria sentido no contexto da banda que são. A escolha das frases foi bastante óbvia para mim em alguns dos capítulos, para outros nem tanto mas surgiram de uma forma muito espontânea também. Por exemplo, a ouvir Monster Magnet no carro, fiquei com a frase na cabeça como muito adequada ao capítulo que estava a escrever naquele momento. Ou seja, há frases que dizem respeito directamente à história e aos Moonspell, mas outras são referências minhas, de músicas que ouvia ou livros que lia, que definiram um mapa mental que fui criando para estruturar o livro e que podem parecer muito pouco óbvias às pessoas, quiçá à própria banda.
O livro tem uma componente gráfica muito forte, desde as fotos, à capa, a alguns pormenores do interior. O Ricardo teve um papel activo nessa parte também?
Sim, tive esse papel activo na escolha das fotos e da sua localização no texto. Tive uma grande ajuda na recolha e tratamento das fotos por parte do Paulo Mendes, que é também o autor de muitas das fotos, e depois o Luís Morcela, designer da Saída de Emergência, teve todo o mérito no trabalho gráfico feito, que acho que valoriza bastante o livro.
O Ricardo teve a oportunidade de estar com a banda nos “bastidores” do Alcatraz Hard Rock & Metal Festival, mas foi acompanhando a banda em vários concertos, alguns até bem longe. Como se sentiu ao experienciar tudo na primeira pessoa?
De início senti-me um pouco como um intruso, mas creio que isso terminou logo na primeira viagem que fiz com eles. Fizeram-me sempre sentir bem-vindo e rapidamente se desenvolveu uma relação de amizade entre nós. Não se tratou apenas de uma colaboração tendo em vista o livro, mas de laços criados e que se irão manter. Isso foi essencial para o livro e levou a que também me tenha colocado nele. Ou seja, o meu instinto é nunca escrever na primeira pessoa mas fiz isso várias vezes ao longo do livro. Pela confiança que senti deles, todo o processo foi como um enorme diálogo e foi através da escrita que dei a minha resposta. Se não tivesse tido essa vivência com eles, de ir para a estrada também, o livro não teria a vida que acredito que tem. Foi sentado, a conversar calmamente com cada um deles, que conheci a história da banda e o seu passado. Mas foi junto deles que conheci verdadeiramente os lobos que continuam a ser homens, apesar do título.
Tal como refere no livro, os Moonspell são uma banda de reconhecimento nacional com uma história enorme e inúmero prestígio a nível mundial. Apesar de as coisas se terem alterado nos últimos anos em Portugal, parece ainda haver algum preconceito para com o metal em geral, e é dado maior destaque a músicos que por vezes têm uma projecção mais mediática, mas também mais fugaz. O que acha que se pode fazer no sentido de inverter essa tendência?
Essa é a pergunta do milhão de dólares. Gostaria de ter uma resposta objectiva para a mesma, mas não é simples indicar uma ou várias medidas para que essa tendência se inverta. Todas as semanas se declara a morte do rock, que nada diz às novas gerações e que é noutros géneros que encontram as suas referências. Talvez seja ingenuidade minha pensar que uma canção como «Smells Like Teen Spirit» ecoa da mesma forma num miúdo de hoje como na minha geração, mas vou continuar a acreditar que sim. Acho que há espaço para tudo, do metal, ao pop, passando pelo hip hop e a todos os outros géneros. Contudo, a igualdade de exposição não se verifica, e há oportunidades que estão a ser vedadas baseadas no género. Num contexto mainstream, temos um festival como o NOS Alive completamente esgotado e com um cartaz, ainda que variado, baseado no rock, com bandas como Pearl Jam, The National, Queens Of The Stone Age, Nine Inch Nails ou Artic Monkeys, por isso as notícias sobre a sua morte são largamente exageradas. Poderá argumentar-se que são bandas com décadas de carreira, e que não tem surgido renovação e que se está a viver da nostalgia, mas aí é porque acredito que haja portas fechadas logo à partida.
Voltando ao metal, existe o chavão de que se trata de um nicho de mercado. Mas quando vemos festivais, Europa fora, com 70 ou 80 mil pessoas, fico com muitas reservas quanto a essa resposta. Em Portugal, tivemos recentemente os Iron Maiden a esgotar a Altice Arena, o Ozzy Osborne perto disso, e ainda os Kiss e os Scorpions com muito boas plateias. Milhares de pessoas foram a esses concertos, que depois não vão a outros de menor dimensão porque simplesmente não conhecem ou não sabem. Se foram 18 mil pessoas a Maiden, não há 5% ou 10% dessas pessoas que estariam num concerto de uma boa banda portuguesa de metal, ou de uma jovem promessa do estrangeiro? Acredito que com as ferramentas certas, e sem que as portas se tranquem logo à partida, isso possa ser possível.
Muito mais teria a dizer, e nem sei se respondi à pergunta, mas aqui fica uma visão do tema.
Obrigada ao Ricardo pela disponibilidade!
Fiquem atentos.. em breve teremos a entrevista aos Moonspell respondida por Fernando Ribeiro.