David Soares
Escritor português conhecido pelos seus romances meticulosamente pesquisados e complexos que versam sobre temas históricos e ocultismo. A revista literária portuguesa "Os Meus Livros" definiu-o como sendo «o mais importante escritor português de literatura fantástica». Escreveu quatro romances, quatro livros de contos, oito livros de banda desenhada (um deles publicado em França), um livro para crianças e dois livros de ensaios. Recebeu três troféus para "Melhor Argumentista Nacional" pelos seus livros de banda desenhada. O seu livro mais recente intitula-se «Palmas Para o Esquilo» (Kingpin Books, 2013).
Blogue do autor: http://cadernosdedaath.blogspot.pt/
Página do Facebook: https://www.facebook.com/escritor.DavidSoares
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Nacionalidade: Portuguesa
O seu Filme favorito: «O Tambor», de Volker Schlöndorff.
O seu Livro favorito: «Darconville’s Cat», de Alexander Theroux.
O seu Anime favorito: Não tenho.
O seu Manga favorito: «Uzumaki», de Junji Ito. (vejam a opinião do FLAMES aqui)
O seu programa de Entretenimento/Evento/Espetáculos favorito: Não tenho.
A sua Série de televisão favorita: «The Storyteller», de Jim Henson.
O que é que surgiu primeiro na sua vida: o gosto pela banda desenhada ou o gosto pelos romances?
Primeiro, o gosto pela leitura. Aprendi a ler sozinho, em casa, antes de ir para a escola, e os livros, de prosa e de banda desenhada, eram os meus brinquedos. Não categorizo em diferentes graus de importância ou de valor um bom livro de banda desenhada ou um bom livro de prosa: para mim, são linguagens literárias, pertencentes ao mesmo conjunto.
Descobri muito cedo que aquilo que eu queria fazer era escrever. Não foi nenhuma revelação, nenhuma epifania. Simplesmente, descobri: tal como se descobre as preferências sexuais. Quando era miúdo fazia bandas desenhadas e escrevia contos e, gradualmente, fui desenvolvendo a minha voz autoral. Mas ler e escrever não são a mesma coisa, assim como X é diferente de f(X). Um escritor não é um leitor: é um escritor e, em virtude disso, olha para os livros de um modo muito diferente de um leitor. No mínimo, eu olho para os livros de um modo diferente.
Para começar, há muitos anos que deixei de ler ficção.
Não leio romances, nem livros de banda desenhada. Só leio não-ficção: história, política, filosofia, divulgação científica, conhecimentos extravagantes. A ficção aborrece-me, porque consigo ver a estrutura invisível que sustenta o texto, consigo discernir as intenções do autor e as razões das suas escolhas. É demasiado transparente para mim. Acho que a maioria dos escritores não lê ficção ou, então, só lê, criteriosamente, os novos livros dos seus autores preferidos ou os clássicos.
Neste momento, as únicas ficções que leio são os novos livros escritos por dois ou três autores que eu considero como sendo, de facto, verdadeiramente geniais e alguns clássicos que eu ainda não tive oportunidade de ler. Os leitores poderão ficar surpreendidos com isto, mas é preciso que compreendam que aquilo que eles esperam e retiram de um livro é muito diferente daquilo que um escritor espera e retira de um livro. A experiência da leitura, em si, é totalmente diferente. Estar obcecado em ler todas as novidades literárias e em acompanhar as carreiras dos escritores ao detalhe é um comportamento de fã: os escritores autênticos nunca são fãs. Os leitores é que são.
Nasce-se com o dom de desenhar banda desenhada ou é um talento que pode ser aprendido?
Tudo pode aprendido e desaprendido. Até certos limites, claro. Nasce-se com determinadas aptidões que, à medida que se vai crescendo, se ramificam em talentos inesperados. Tenho uma aptidão muitíssimo grande para palavras e como sou um pouco sinestético atribuo-lhes cores e objectos. Adoro palavras e a etimologia é uma das minhas maiores paixões. Adoro ler dicionários e compilar listas das minhas palavras preferidas. Por outro lado, sou muito mau com números. Há quem tenha aptidão para ambas as coisas, palavras e números, mas eu não tenho. É por isso que tenho alguma dificuldade em recordar datas: às vezes tenho de recorrer a mnemónicas para me lembrar de certas datas, de determinados eventos históricos. Os números não falam comigo, como falam as palavras e não os consigo compreender. Felizmente, a minha mulher tem duas licenciaturas em matemática, por isso estou a salvo.
Nesse sentido, não existem dons, no sentido de qualidades preternaturais predestinadas. Somente se
nasce com aptidões diferentes, que poderão ser desenvolvidas nas circunstâncias adequadas. Alguns tropos da linguagem da banda desenhada podem ser aprendidos, mas se não existir uma centelha de genialidade que suporte essa aprendizagem tudo aquilo que se irá fazer será menor ou demasiado esforçado quando comparado com os trabalhos dos autênticos artistas, aqueles para quem a linguagem da banda desenhada ou da prosa é perfeitamente natural. A arte tem de sair de dentro para fora, não pode ser enxertada ou introduzida. Existem demasiados indivíduos a querer ser artistas sem terem esse fogo iniciático dentro deles e vemos exemplos a todas as horas. São enganados pelos aforismos de supermercado inventados por quem pensa saber melhor do que os artistas aquilo que é preciso para criar arte.
A arte é mineralogia: quer-se extrair o ouro, mas isso dá muito trabalho. É necessário suar muito e perder muitas noites de sono. Não vai ser o trabalho árduo que irá transformar um indivíduo num artista, mas é o trabalho árduo que transforma um artista mediano num grande artista: ou seja, o esforço e o sacrifício só beneficiam quem tem espírito de artista dentro de si. A arte não se compadece com confortos, com compromissos. Se não se der tudo, não se ganha nada. Tudo depende, é evidente, daquilo que se almeja. O meu exemplo é o de que o caminho certo – o único caminho – é o mais difícil. Se não me engano, em «A Divina Comédia», de Dante Alighieri, a palavra “sorrir” só aparece uma vez: é que sair da treva em direcção à luz não é divertido, nem fácil, mas quando se alcança a claridade o sentimento é insubstituível. O segredo é subtrair dos nossos dias tudo aquilo que atrofia e obstaculiza a nossa missão – porque ser-se artista é uma missão. É uma vocação, como a do sacerdócio – e igualmente ascética.
Acha que os portugueses já aprenderam a apreciar os livros de banda desenhada? A procura por este tipo de arte tem vindo a aumentar em Portugal?
Não sei. Diria que não se aprendeu a apreciar livros nenhuns. Acho que, em geral, se lê pouco e se lê mal em Portugal, mas de quem é a culpa? A gente vai à Espanha e percebe que existe uma oferta estonteante de traduções, desde os clássicos até às novidades, em formato de livro de bolso, que é o ideal para verdadeiros leitores, e quando se olha para Portugal percebe-se que o panorama é dessultório. O arcediago Claude Frollo, de «O Corcunda de Notre-Dame», de Victor Hugo, diz às tantas que «o livro vai matar o edifício». Ele referia-se ao chamado “livro de pedra”, que é a catedral. É uma personagem ingénua neste sentido: ele achou que um novo veículo de conhecimento iria eliminar um veículo antigo de conhecimento. Hoje, aquilo que está a matar o livro não é o eBook, epifenómeno perfunctório e ridículo, sintomático da doença neófila de que padece a nossa cultura hodierna, mas os maus livros: os títulos que não passam de guiões de cinema e televisão disfarçados de livros, aqueles que, criando modas e molduras de referência, roubam espaço aos livros verdadeiros – nas livrarias, na divulgação de imprensa, etc.
A banda desenhada é observada pela maioria do público como sendo algo adequado para analfabetos
e, se calhar, até por culpa da própria banda desenhada, que está cheia de livros muito maus. Aquilo que é mau, infelizmente, acaba sempre por sobressair e distorcer a visão dos observadores, que ficam com uma ideia errada. Uma das situações que tem concorrido para que se crie essa má reputação é o facto de que quem deseja escrever não escolhe ser autor de banda desenhada e quem cria bons livros são os escritores. A banda desenhada atrai os desenhadores que, quase sempre, não estão interessados em contar uma boa história, mas em mostrar virtuosismo gráfico. Aliás, um bom desenhador raramente se torna um bom autor de banda desenhada: para se ser um bom autor de banda desenhada nem sequer é preciso desenhar “bem”. É preciso conhecer essa linguagem, ponto. Em banda desenhada, a imagem é texto. Quando se compreende isto, o resto vem por acréscimo. Quem quer ver desenhos “bonitos” que compre um livro de ilustrações ou de pintura e deixe a banda desenhada em paz. A banda desenhada é uma linguagem literária: ninguém diz que viu uma BD, mas que leu uma BD.
A banda desenhada portuguesa sofre por ser um nicho dentro de um nicho: poucos leitores de banda desenhada lêem banda desenhada portuguesa. Os meus leitores lêem os meus livros de banda desenhada e os meus livros de prosa porque gostam da minha obra, mas tenho leitores, por exemplo, cujas únicas bandas desenhadas que lêem são as minhas, porque a banda desenhada, no geral, é algo que não lhes interessa.
A banda desenhada portuguesa sofre imenso – ou gosta de sofrer imenso, parece-me – com o facto de ser “pouco comercial” e com o facto de os seus autores serem incapazes de se profissionalizar e viver de fazerem banda desenhada num mercado pequeno e pouco atractivo.
A minha opinião é a de que essa é uma perspectiva errada. Por qual motivo é que os autores de banda desenhada têm, forçosamente, de viver de fazerem banda desenhada? Isso não os menorizaria, de todo. Muitos grandes escritores foram funcionários públicos, que nunca viveram da escrita. Esta falsa ênfase na dita profissionalização só serve para criar comportamentos artificiais e obsessivos que desviam os criadores da própria arte. Ninguém estará, de facto, à espera que um artista e uma obra caracterizados como sendo “profissionais” se definam pelo significado mais elementar dessa palavra: só se espera que a obra e o artista tenham uma relevância mais alta, uma estética mais sofisticada e um valor técnico superior. Com efeito, é esse o significado original da palavra: o de dedicar-se a uma actividade com rigor e não o de viver em exclusivo dessa actividade. Partindo daqui é fácil observar que sendo a banda desenhada portuguesa uma arte desatractiva comercialmente e monetariamente pouco recompensadora todos os autores que escolhem dedicar-se a ela com rigor são autênticos profissionais, independentemente de recolherem rendimentos regulares desse labor.
Empregar a grosseira bitola de que um verdadeiro profissional é, em exclusivo, aquele que vive (ou sobrevive) de um determinado ofício coloca no campo dos profissionais os tarefeiros que, nas artes e nas letras, produzem proficuamente os piores trabalhos possíveis e deixa de fora artistas de valor incontornável que não tiveram na realização artística a sua principal ou única fonte de rendimentos.
Acrescento que a banda desenhada poderá vir a desaparecer, infelizmente. A literatura em prosa está connosco há demasiado tempo para que isso lhe aconteça, mas a banda desenhada é recente, tem pouco mais de dois séculos, mais ou menos a idade da democracia. Se as novas gerações não encontrarem significância na linguagem da banda desenhada, que, ao contrário do que se pensa, é muito diferente da cinematográfica, ela poderá desaparecer.
De entre tantos géneros literários, porque é que optou pelo Terror e Fantástico? Quando começou essa sua paixão por este tipo de livros?
Não optei por género nenhum. Não escrevo segundo géneros, fórmulas ou quejandos. A minha obra inscreve-se naquilo que se denomina de Fantástico, em virtude da minha voz autoral se preocupar com ideias e imagens que transcendem a esfera restrita do chamado realismo, da vapidez da vida de todos os dias, mas não existe da minha parte nenhuma intenção de inscrever a minha obra, nem deliberadamente nem acidentalmente, nesse âmbito.
Como já escrevi acima, aquilo que é genuíno sai de dentro para fora, não pode ser imposto. Ora, aquilo que qualifica um artista como sendo um autor é o facto de possuir um universo artístico pessoal, uma voz autoral única, que vai ao encontro de alguns temas-chave que, constantemente, interroga e explora. O ponto de vista autoral pode mudar de obra para obra ou de conjuntos de obras para conjuntos de obras, mas a voz autoral será sempre a mesma, porque é autêntica. Não se pode falseá-la, como fazem os tarefeiros – alguns dos quais são respeitadíssimos na nossa sociedade da inimputabilidade. Chamo-lhe sociedade da inimputabilidade, porque, infelizmente, já não se sabe distinguir o bom do mau e ninguém é chamado à atenção por culpa disso.
Tenho cada vez mais tendência para isolar-me, porque sinto que tenho pouquíssimas coisas em comum com esta sociedade que me circula: não gosto da linguagem neófila com que se lauda o novo para rasurar o velho, nem da deselegância que enoda as relações entre indivíduos, ainda menos da desvalorização da cultura em benefício do entretenimento. Há coisas – atitudes, comportamentos, em principal – para as quais já não tenho cabeça, quanto mais estômago, e que me fazem sentir fisicamente doente. Disse que era mau com números, mas a subtracção é uma operação que sempre soube fazer bem: aquilo que extirpo da minha vida, extirpo para sempre.
Sabemos que o David é manifestamente contra o novo acordo ortográfico. Qual acha que são as consequências deste acordo para o futuro da língua portuguesa?
Não sou capaz de prever consequências de espécie alguma, mas sei, por reflexão histórica, que todas as iniciativas artificiais impostas de cima para baixo apresentam sempre uma escala crescente de intensidade paralela a uma escala decrescente de eficácia. Ou seja, mais cedo ou mais tarde, independentemente da força com que foram implementadas, irão desagregar-se e desaparecer. Somente aquilo que é criado de baixo para cima tem longevidade.
Com isto não quero dizer que a língua nasce na rua: nenhuma língua europeia nasceu na rua. Na rua nascem atalhos convenientes à oralidade e à rápida e eficaz transmissão de informação.
O ambientalista pioneiro (e lúcido, ao contrário dos anti-humanistas disfarçados de ambientalistas) Stewart Brand postulou uma vez que «a informação quer ser livre». Esta é uma grande verdade e adquire uma expressão máxima na coloquialidade do discurso de rua, nas conversas de todos os dias: falar e escrever são coisas diferentes, tal como opinião e facto são coisas diferentes. Aproximar a escrita da oralidade é um disparate. Além de que o léxico contemporâneo foi, praticamente, todo inventado por escritores, filósofos, teólogos, cientistas.
Pensem numa palavra e procurem a sua origem: de certeza que irão remeter à mesa de trabalho de um escritor. Até a palavra “internacional”, tão em voga hoje em dia, foi inventada pelo filósofo Jeremy Bentham. Thomas De Quincey inventou quase duzentas palavras, entre as quais “fenomenal”, “interconexão”, “intuir” e “subconsciente”. “Fragrância”, uma palavra mais poética, foi inventada pelo neologista-mor John Milton, assim como “jubilante”, “sensual” e “extravagância” (além de “satânico” e “pandemónio”). Percy Shelley inventou “optimista”, “espectral” e a designação “hino nacional”. A palavra “computador” foi inventada no início do século XVII pelo poeta Richard Braithwait. Mas houve quem tivesse ido mais longe: a língua latina que conhecemos foi quase toda inventada por Cícero, que quis desenhar uma língua com a dignidade do grego (o latim era, até então, uma língua muito rudimentar – o verbo “existir” nem sequer existia). Mais: mesmo assim, o latim que nós conhecemos é obra dos escolásticos medievais, que se divertiam a inventar neologismos para as suas traduções e adaptações dos clássicos romanos. Nem sequer os numerais romanos que conhecemos foram os verdadeiros numerais romanos, mas também foram inventados.
As línguas não nascem nas ruas, mas nas secretárias dos escritores e ganham dimensão nos livros.
Sobretudo, o AO90 é ilegal. Não passa de uma simples Resolução do conselho de ministros (não possui nenhum carácter vinculativo) que nem sequer foi promulgada, nem publicada no Diário da República. A ortografia em vigência, por sua vez, foi ratificada por Decreto-Lei (em 1973). Legalmente, uma resolução não suplanta um decreto-lei, por conseguinte a “antiga” ortografia é que é a legal e aquela que vigora. Esta questão importantíssima tem sido mantida afastada do debate público, mas tenho ideia de que mesmo que tivesse sido anunciada na comunicação social os indivíduos se estariam nas tintas para ela, pois o público, ao que parece, não percebe nem quer saber, verdadeiramente, desta matéria, ainda mais quando confrontado com os problemas levantados pela draconiana conjuntura económico-financeira do país, o que é uma pena, porque nem só de pão vivem os homens. Em essência, são estas as duas razões que me levam a ir contra o AO90: porque é uma deformação da legalidade e uma aberração histórica – somente pugnada por um punhado de linguistas, como o brasileiro Antônio Houaiss (criador, já falecido, do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa) e pelo português João Malaca Casteleiro (responsável pela edição portuguesa do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).
Pode levantar o véu relativamente a novos projetos nos quais esteja a trabalhar?
Este ano será publicado um novo livro de banda desenhada escrito por mim, intitulado «Sepulturas dos Pais», com desenho de André Coelho. Tenho outra banda desenhada escrita, intitulada «O Poema Morre», que estou, nesta altura, a rever e para a qual já tenho um desenhador. Também tenho um novo romance e um novo livro de não-ficção já começados, mas será prematuro revelar informações detalhadas sobre eles. Posso desvendar que o romance terá um espírito de certa forma semelhante a «Batalha», embora o tom seja muito mais umbroso e niilista, e que o livro de não-ficção é uma visão nova, com algumas heterodoxias, sobre um certo tema histórico.
Muito obrigada pela disponibilidade!
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